sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Malhoa e os “Salons” de Paris (III)

1898 – As velhas d’As papas, e No forno co’as novas



Datada de Figueiró, de 26 de Setembro de 1897, endereçada ao «Manel amigo» [1] e assinada pelo «Zezé», podemos ler: «Tenho continuado com as “velhas”, mas a melhor a do primeiro plano tem estado muito mal, a ponto de eu julgar que ela se finava na última sessão! Resultado, tenho feito e desmanchado, isto no meio de contrariedades que tu podes imaginar! Agora cá a tenho de casa, cama e pucarinho, com o médico, para ver se salvo o trabalho».
Sabemos que, contrariedades, exageros e cuidados à parte, o trabalho foi salvo, e no ano seguinte Malhoa apresentá-lo-á, em duas versões como começava a ser habitual: no Salon de Paris e no Grémio Artístico – La bouillie, 1898, e, em versão reduzida, As papas, c.1897.
        O quadro maior, o conhecido, 85x120, datado de 1898, é o que participa no Salon de 1898 e, no ano seguinte, na 9ª Exposição do Grémio,1899, já com a indicação «pertence ao Ex.mo Sr. Dr. F.». O quadro mais pequeno, talvez um pouco anterior, cujas características se desconhecem e nunca vimos [2], foi apenas apresentado na 8ª Exposição do Grémio, 1898 [3]. Ficamos também a saber que, ao contrário de estória costumeira, as velhas eram figueiroenses de gema e não a criada-do-não-sei-quantos - a história fica contada pela pena do próprio Malhoa. Tudo o resto, ou são patranhas antigas [4] ou trapalhação da modernidade [5].

            Por tudo isto, o quadro mostrado no Salon de 1898 - La bouillie / As papas, 1898 - é, sem muita dúvida, este – o do «Ex.mo Sr. Dr. F» [6]:


JMalhoa. La bouillie / As papas, 1898. ost, 85x120, c.p.

Em Março de 1898, Malhoa assentou no seu livrinho: «Despeza com a remessa dos meus dois quadros “La bouillie” e “Au four” pª serem expostos no “Salon” d’este anno, e dos quais tive a noticia de serem recebidos a 1 de Abril – 60$000».
Deste modo, lá terão ido. E, segundo o catálogo do Salon de 1898, receberam os seguintes títulos e respectivos números de catálogo:

1371La bouillie
1372Au four; costumes du Minho (Portugal) 

         Este outro quadro, Au four; costumes du Minho (Portugal) / No forno, 1897 ou 1898 [7], é o que o artigo de The Studio nos diz «feito no seu especial género – o “género Malhoa”, como se diz em Portugal» - este mesmo:        

JMalhoa. Au four; costumes du Minho (Portugal) No forno, c.1897. ost, 45x54. 


«No Forno é uma nota diferente, irradiante, hillare, da adolescencia talvez d’essas mesmas mulheritas que estão já decrepitas nas Papas, e que neste quadrito primaveram ainda, como rosas silvestres, na veneziana alegria do amarello e do escarlate. É uma das coisas lindas que Malhôa tem na sua obra: tres raparigas do norte, occupadas no labor de coser brôa, sob o alpendre da casa onde os pintos vagueiam, e verduras de parreiral cortam o ceu…» [8].
É muito provavelmente o primeiro de uma longa série de quadros de forte colorido, com as alegres raparigas “minhotas” de Figueiró, atarefadas nos seus trabalhos do dia-a-dia, e inspirados de algum modo no - queiramos ou não - grande romance naturalista de Júlio Dinis [9].

As referências à participação de Malhoa no Salon de 1898 na imprensa internacional continuam a ser elogiosas: «…une jolie scène, la Bouille de M. Malhoa»[10]; «dans “la bouillie” nous montre une vieille édentée fort bien observée»[11]; «Il y en a, et même de brutale, en la Bouille, de M. Malhoa; mais comme la scène a dû être prise sur le vif!»[12].
            No ano seguinte, como passa a ser regra, ambas as obras terão então ocasião de serem mostradas ao público nacional. Estarão presentes na 9ª Exposição do Grémio Artístico e o respectivo catálogo disso nos dá conta:
43 – As pápas - L.1,20 – A.0,85 - (Pertence ao Ex.mo Sr. Dr. F.)
44 – No forno – L.0,54 – A.0,45 – 300$000 [13]

No forno tem, além disto, direito a reprodução no dito catálogo. 


É então, a propósito desta apresentação em Lisboa, que teremos escritos e impressões mais completas sobre estes quadros. De Fialho, parte já foi citada, mas vale a pena ler tudo. Pelo que o deixaremos na íntegra em novo artigo já a seguir merece!
Quanto a o Occidente, de 30 Abril de 1899, em artigo assinado por «R», dá-nos conta do encerramento da mostra cinco dias antes com a presença do Rei e da Raínha, e sobre Malhoa, depois de se encantar com o retrato de Eugénia Relvas e seus filhos, diz-nos: «… As papas e No forno que são duas telas preciosas, a ultima de um colorido vivissimo mas sem crueza e antes harmonioso e alegre.»


JMalhoa. As Papas «estudo», c.1897. ost, 60x54.   ver [6]




4 Jan. 2013. LBG





[1]  Carta de JMalhoa a Manuel Henrique Pinto, c.p.

[2]  No Catálogo da 8ªGA, está indicado como tendo 40x55.

[3]  No seu registo pessoal «Receita | Despeza», em Dezembro de 1898, Malhoa esclarece tudo: «”As papas” quadro exposto no “Salon” em 1898, vendido ao Dr. Francisco Falcao, de Constancia – 500$000». E logo abaixo: «”As papas” estudo para o quadro acima exposto na exposição do “Gremio Artistico” em 1898, vendido por intervenção do José Relvas, á Exmª Snrª D. Maria do Ceu Mendes – 200$000».

[4]  No que toca à tal criada e a uma alegada ida d’As papas, de novo, ao Salon de 1900.
Esclareçamos: ao contrário do comummente escrito, não volta a haver “papas requentadas” para ninguém. O catálogo oficial de 1900 é omisso, mas no seu exemplar, no local exacto, entre os nºs 874 e 875, Malhoa anotou a caneta «874a – Malhôa (J) – Retrato Condçª Mossamedes». (Entre ambos, em comum, só mesmo os bigodes das velhas…)  Para lá do que já referimos antes – ver artigo de The Studio e nota 8.
E porque tal mito não deve ter nascido de geração espontânea, a única explicação para a sua existência reside numa legenda da reprodução do estudo a carvão de As papas (o “dos Patudos”, o “da galinha e da poia”) publicada no Catálogo da Exposição do Rio de Janeiro, 1906, em que tal indicação aparece inopinadamente e terá feito escola…

[5]  Que também aqui se volta a repetir. Mais uma vez as novéis fichazinhas CRJM/0346 e CRJM/0350 mostram-se muito pouco recomendáveis.

[6] Ele há pelo menos mais umas Papas, um dito «estudo», uma tela com 62,5x55, onde apenas vemos a velha do segundo plano – a “pior das velhas” – aqui, aparentemente, bem “melhor” que a velha do quadro definitivo… Neste «estudo» aparecem ainda, no plano mais próximo, o prato da outra velha e a mão desta segurando a colher donde escorre o mel sobre as papas de milho, como se a outra velha, «a do primeiro plano», tivesse sido abruptamente cortada - todavia, observação atenta do verso do quadro dá para perceber que nada mais terá sido pintado no resto da tela. E, pelo seu tamanho e pelo seu historial, este não deverá ser o quadro da 8ª do Grémio, o tal vendido à D. Mª do Céu Mendes. Tratar-se-á, assim, de uma outra versão, parcial, de As papas.

[7] Datado de 1897 no catálogo da Grande Exposição de Homenagem de 1928, onde são indicadas as dimensões 43x52. Ligeiramente diferentes dos 45x54 constantes no catálogo da 9ªGA, 1899. Contudo, aparentemente e pela ampliação de uma outra fotografia, parece ter sido datado de 1898...

[8] ALMEIDA, Fialho de - in A Patria, 21 Abril 1899. Artigo republicado in Á Esquina (Jornal d’um vagabundo). Lisboa: Livraria Clássica Editora, 5ª edição, 1923, p.178 a 182. E que poderá ler na íntegra aqui.

[9]  É por esta data que Malhoa pinta o João Semana, 1897, personagem de As Pupilas do Senhor Reitor. Depois, seguir-se-ão muitas outras “minhotas” figueiroenses em A corar a roupa, c.1899, As cebolas, c.1900, A Descamisada, 1903, a Clara (ela mesma) Torcendo a roupa,1903, O Soalheiro, 1904, vários Cuidados de Amor, c.1905, 7º não furtar… as uvas do Sôr Prior, c.1905. e As Pupilas do Sr. Reitor (as próprias), 1906… - quase todos com lucrativa passagem pelo mercado brasileiro.

[10] Lepage, in Art Meridional, 11 Julho 1898, apud Matilde Tomaz do Couto, in Malhoa e Bordalo, confluências duma geração. Caldas da Rainha: IPM-MJM, 2005, p.16.

[11] Reforme, 12 Junho 1898, apud idem, p.17.

[12] Tuster, in Monteur Universel, 5 Junho 1898, apud idem, p.17.

[13]  Como se pode ver, No forno apresentava-se para venda em 1899. E Malhoa dar-nos-á disso conta, em Abril 1900, quando escreve, no dia «18 - Venda ao Balthazar Cabral do quadro “No forno” – 250$000». (Aliás o mesmo proprietário que aparece no catálogo da Grande Exposição de Homenagem de 1928). Pelo que se não percebe como é que o mesmo quadro poderá ter sido «Comprado por José Relvas em Dezembro de 1897, por 200$000 réis» - como nos querem doutamente fazer crer… Mais um mistério!?
Podemos esclarecer: na tal data e pelo tal preço, Relvas comprou um quadro, sim, mas O mineiro. E só deste Malhoa assentou a venda. Afinal, mais um pormenor… e muita paciência.

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