quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O «Crepúsculo» da Dona Amélia (c.1892)

... e a teoria da batata.

 
Prometido é devido. Disse há dias que aqui traria o quadro de JMalhoa, Crepúsculo, c.1892, comprado pela Rainha Dona Amélia na 2ª Exposição do Grémio Artístico. Trata-se de um quadro quase desconhecido. Tem-se dele notícia pelos jornais da época, pelo catálogo da mostra e pouco mais. Que se saiba, nunca ninguém no nosso tempo lhe terá visto a cara… quando dele se fala é por ouvir dizer – lendo, claro está.
Pois aqui vai. Em foto antiga, a preto e branco – sépia, para ser mais preciso - que não deverá haver outra. Dá para ver a assinatura: «José Malhôa» - ainda aquela, a dessa altura – e não se lhe descortina data – ou porque não datado, o mais natural, ou porque a foto a cortou.


E, já agora, vai também a foto [1] do mesmo quadro dependurado nos aposentos de Sua Majestade a Rainha, numa câmara do Palácio das Necessidades,  meia dúzia de anos depois de adquirido. Lá está ele, por detrás da chaise-longue da Dona Amélia, junto ao friso do tecto, nos seus dois metros de largo.



Este é um daqueles quadros das colecções reais a que se perdeu o rasto - tal como A caça dos taralhões, c.1891, de MHPinto, comprado no ano anterior pelo Rei. Que se saiba, não está inventariado em qualquer colecção nacional. E, ou saiu do país, ou se perdeu definitivamente, ou jaz esquecido nalgum buraco de um ministério ou repartição. Pode ser que algum velho contínuo lhe conheça o paradeiro…
De palpável, hoje em dia, somente um estudo – esta pequena tábua, 12x22,5, da antiga colecção AC – Borralheira, c.1890. Sem muitas dúvidas, um belo estudo preparatório para este mesmo quadro.



Sobre o quadro, toda a crítica de então, mais preocupada com O último interrogatório do marquês de Pombal, é parca em descrições e comentários. Dele, João Sincero [2] limita-se a uma pequenina referência: «… a Rega dos alfobres, também de aspecto muito agradavel, assim como o Crepusculo, tira o seu effeito do contraste da luz e da sombra, muito predilecto do artista...». E Fialho d’Almeida [3] presenteia-o com o já anteriormente citado «… e quanto ao Crepusculo, é um pot-pourri do Angelus de Millet, com menos uncção religiosa, e mais batatas».
E, só por isto, vale bem a pena mostrar aqui também o quadro de Jean-François Millet (1814-1875), Angelus, c.1857/59 – os camponeses não tocam viola, mas colhem batatas…  


Voltando à crítica da época. Ribeiro Artur [4], na sua crónica que parece em grande parte decalcada da do Fialho, dá a este quadro algum destaque e esclarece-nos melhor: «É explendido o seu – Crepusculo -. Desce o véu da noite, a penumbra esfuma os objectos. Á direita uns clarões afogueados do occaso, á esquerda um pequeno arbusto torcido quebra a monotonia do horisonte. Dois aldeões no primeiro plano apanham as ultimas batatas. N’um carreiro tortuoso uma figurita, ao longe, tambem curvada sobre o solo. São justos os tons, e a melancolia da hora espalha uma uncção tocante; esquece se a gente a ver os pennachos de fumo esbranquiçado que sobem de umas fogueirinhas e são brandamente levados pela aragem». 
Não haja dúvida alguma que falamos da mesmíssima coisa! 


Depois disto as referências são esparsas, imprecisas e pouco mais adiantam que alguma confusão entre género e paisagem, que falam de ouvir falar. É pois coisa que pouco interessa.


Aqui fica também a folhinha do Catalogo Illustrado da Exposição de Bellas Artes promovida pelo Gremio Artistico em 1892, com as quatorze obras que JMalhoa ali levou. Com o texto de Pinheiro Chagas inspirador do quadro do Marquês, e os nºs de catálogo, títulos, medidas e preços do Crepusculo e dos outros quadros todos.




Por outro lado, consultando o Annuario do Gremio Artistico relativo a 1893-94 [5], confirmamos a compra Real: «Malhôa (J.) - Crepusculo – 200x140 – 500$000 réis. A Sua Magestade a Rainha». Ficamos também a saber que, nesse mesmo ano de 1892, Malhoa, dos 14 quadros expostos, apenas vendeu mais dois - Pensando no caso e As aboboras - a G. Gerosch e G. R. respectivamente, e pelos valores de catálogo.
E, já que estamos com a mão na massa, vasculhemos o resto e verifiquemos os outros resultados comerciais. Na 1ª Exposição, a do ano anterior, a venda limitou-se a Noé e Preciosa, comprado por António Cambiaso, por 180$000 reis [6], afinal o único que tinha para vender. Na 3ª Exposição, em 1893, Malhoa despacha os três quadros vendáveis: Ao toque das Trindades, por 300$000, ao Conde do Alto Mearim; Á missa das seis, que custou mais 200$000 à Rainha; e Os curiosos, pelo qual o Conde de Proença-a-Velha deu 135$000. E, finalmente quanto ao que neste Anuário é possível saber, em 1894, na 4ª Exposição, as vendas na mostra reduzem-se a um simples Pastel, Estudo, que rendeu 67$500 pagos de novo pelo Conde do Alto Mearim. Nessa mostra os dois Nús eram caríssimos  - e um deles foi directo à Academia - e, para vender, sobraram Os Ouriços que no Brasil haviam de ter destino...
 Claro que haveria mais as vendas em atelier, os Retratos e alguns outros quadros que às Exposições iam já com dono, os trabalhos de decoração em edifícios públicos e privados… e O último interrogatório do Marquês de Pombal que, depois da desilusão, Malhoa irá pôr as discípulas todas a pagar – mas isso é uma outra história, e para vermos mais tarde.


5 Dez. 2012. LBG.



...Mais umas quantas batatas...

            A vida tem destas coisas: volta e meia aparece-nos diante dos olhos o que antes não viramos e devíamos ter visto. Estava agora mesmo a dar uma vista de olhos a um catálogo praticamente esquecido, um daqueles a que ninguém liga, um que nunca é referido, e surpreendo-me! Não quis deixar de partilhar aqui.

Trata-se do catálogo da Exposição Nacional do Centenário de José Malhoa (1955), exposição que teve lugar, a crer no que ali está escrito, entre 15 de Maio e 15 de Setembro de 1955, no então «Museu Provincial de José Malhoa», nas Caldas da Raínha. É um livrinho que vale sobretudo pela meia dúzia de magníficas reproduções, a preto e branco, de pormenores de outros tantos dos mais conhecidos quadros de JMalhoa – e a gente perde-se a olhar para elas e esquece o resto. Ora o resto, lido bem lido, evitaria alguns “erros e omissões” que infelizmente persistem por aí. Não cabe agora tratar disso, fiquemos pelas “batatas da D. Amélia [7] ”.

Ora, surpreendentemente, podemos ali ler: «168 – Colhendo Batatas ao Entardecer – José Malhoa | Alt. 1400 x Larg. 2000 T. [tela] | Pertence a Sua Alteza Real a Infanta D. Luísa d’Orleans depositado no Museu Provincial de Belas Artes de Sevilha».
Não devem ficar muitas dúvidas de que se trata da mesma tela – renomeada como soía, com as mesmas dimensões e na posse de uma familiar da inicial compradora. Ficamos assim a saber que o Crepúsculo, c.1892, voltou por uns meses a Portugal nesse ano de 1955.

Se está ou não ainda em Sevilha, não sabemos. Por coincidência, faz pouco mais de um mês, estive no dito Museu – à vista não está, e como só agora soube, também não perguntei por ele. 


9 Jun. 2014. LBG


...ainda umas batatas (agora mais requentadas)

           Passou-me agora pela vista mais um registo que tem a ver com esta nossa velha conversa. Trata-se de mais uma fotografia do «Gabinete particular de S.M. a Rainha» no Palácio das Necessidades, desta vez publicada em 1904 [8]. E cá temos ainda o "nosso" Crepúsculo, c.1892, a espreitar por de trás do reposteiro. 


           A sala é a mesma, vista agora de um outro ângulo, mas quase imutável. Contudo, cinco anos passados, notam-se pequenas diferenças (deixo esse exercício para entretém dos leitores). O Crepúsculo, esse, baixou uns dois palmos... 

10 Jan. 2017. LBG




[1]  In Brasil-Portugal, nº13, 1 Agosto 1899, p.13.
[2]  (Emigdio de Brito Monteiro) in Occidente, nº482, 11 Maio 1892, p.107.
[3]  In Os Gatos, vol.V, folhetim de 14 Março 1892.
[4]  In Arte e Artistas Contemporaneos. Livraria Ferin, Lisboa, 1896, p.196, 197 – A segunda exposição do Gremio Artistico.
No mesmo livro, no artigo sobre José Malhoa, a p.130, Bartholomeu Sezinando Ribeiro Arthur refere o Crepusculo como exposto em 1893. Como é obvio, enganou-se. E leva outros ao engano…
[5]  Annuario do Gremio Artistico relativo a 1893-94. Typographia Franco-Portugueza. Lisboa, 1895. p.47.
[6] «18$000 réis» segundo o Anuário, p.42, o que deve ser engano, pois o preço de catálogo eram os 180$000.
[7] D. Amélia, evidentemente. 
Porque, dá-se o caso, noutros quadros de JMalhoa com a indicação coeva de «adquirido por S.M. a Rainha», tal ser trapalhadamente “traduzido” por «Historial: Raínha D. Amélia (1885)» - sem cuidar de perceber que em tal data a dita Senhora nem era Raínha, nem havia sequer chegado à Pampilhosa a fim de ser recebida pelas autoridades portuguesas antes do casamento com o então Príncipe D. Carlos... 
A Raínha (que também comprava quadros de Malhoa) era então a Senhora D. Maria Pia de Sabóia… Vem nos livros.
[8]  In Illustração Portugueza, nº48, 3 Outubro 1904.

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